Ezequiel Berriel
Francisco assiste à TV quando é surpreendido por um forte som de metal que bate na pedra do piso da varanda. O barulho também desperta a pequena Isabelle. Correndo à janela, Francisco vislumbra um vulto que se afasta e some na noite. No chão da varanda, brilha inerte um revólver Taurus 38 prateado, com duas cápsulas detonadas e quatro intactas no tambor.
Meados de 1962. Uma pequena família em uma cidade interiorana sem muitas opções. O pai cuidava de um pequeno comércio mantendo o sustento da família. A mãe, além dos cuidados caseiros, também ajudava fazendo trabalhos de bordados e costuras. O filho Henrique, com 13 anos, estudava na única escola do lugar e vivia plenamente sua adolescência. A filha Célia, além de trabalhar no centro telefônico, ajudava o irmão com os deveres da escola e, por horas, lhe contava histórias, que minguaram prejudicadas com a chegada do namorado Francisco.
A vida do jovem Henrique fluía lenta. Sempre tinha um sorriso no rosto. Quando pedalava sua bicicleta na volta da escola, gostava de cantar a canção tema de “Bat Masterson” – seu herói preferido. Aos domingos à tarde, quase sempre voltava com os joelhos clamando por curativos em razão das quedas sofridas no futebol jogado com os amigos na quadra de chão da pracinha.
Um fim de tarde, quando voltava da escola, Henrique viu o carro de Francisco em frente a sua casa. Estranhou aquela presença porque Célia havia viajado para passar uma semana de férias na casa dos avós. Junto à janela lateral da casa, ouviu que seu pai e Francisco discutiam em voz muito alta. Ouviu seu cunhado exigindo todo o dinheiro guardado em casa. Henrique sempre soube, por sua mãe, que estavam fazendo economias para as despesas do casamento da Célia e para os seus estudos na faculdade. Queria ser veterinário e para isso, um dia, teria de se mudar para a capital. A discussão, cada vez mais acalorada, tomava um caminho enveredado para a violência, com o pai repreendendo e ameaçando expulsar o genro. A mãe, entre os dois, gritava, ameaçando telefonar para a polícia. De repente, aqueles gritos foram silenciados por dois estampidos rápidos, seguidos por um barulho que parecia um móvel sendo quebrado e depois o som forte dos passos batidos de Francisco fugindo da casa em direção ao seu carro.
Henrique correu para a sala de jantar e se deparou com os pais caídos e mortos sobre o tapete, que absorvia o sangue. Ao lado dos corpos, a cômoda quebrada com a gaveta vazia e, no chão, a arma: um revolver Taurus 38 prateado, que Henrique recolheu e escondeu. Com seu silêncio, sempre declarando nada saber sobre a morte dos pais, o crime nunca foi esclarecido. Henrique foi levado para morar com seus avós na capital e nunca mais voltou. Célia, um ano depois, casou com Francisco e tiveram uma filha, Isabelle.
Os avós de Henrique moravam em uma região pobre e favelada na capital. Escola, bicicleta e futebol aos domingos viraram lembranças. A avó, com problemas nas pernas, vivia em uma cadeira de rodas e pouco ajudava o neto. O avô, sempre bêbado, colocava-o diariamente nas ruas para pedir dinheiro e realizar pequenos furtos, castigando-o com doloridas surras de cinta.
O tempo passou e a meiguice do adolescente Henrique morreu, como também morreu nele aqueles princípios cantados em “Bat Masterson”. Renasceu um adulto embrutecido e temido na comunidade em que morava. As internações e passagens pelos presídios, o envolvimento com marginais, ladrões e assassinos, proporcionados pelo avô antes de morrer, lhe deram toda a formação que precisava para ser um líder. Todas as decisões na vila passavam por ele, inclusive sobre quem deveria morrer ou permanecer vivo. O tempo e as adversidades enfrentadas transformaram-no em um homem frio, duro, poderoso e sem qualquer sentimento, à exceção dos cuidados e carinho que tinha com crianças carentes, em especial com sua avó.
Muito se passou na vida de Henrique até que, certo dia, recebeu a notícia de que a irmã Célia, vítima de uma doença grave, falecera. Chorou por saudades e por culpa. Desde sua vinda para a capital, nunca mais a vira ou tivera notícias suas. Com a morte da irmã, entendeu que chegara a hora. Estava livre para realizar seu maior e sonhado objetivo. Apanhou, de cima de um armário, um pacote há muito lá guardado. Colocou-o em uma sacola de couro e tomou um ônibus para sua cidade natal.
Quando Henrique chegou a seu destino já era noite. Na estação rodoviária, informou-se e descobriu o endereço onde sua irmã morou antes de falecer. Logo, localizou a pequena casa em uma rua estreita e escura da periferia da cidade. Protegido pelas sombras da noite, postou-se sob a janela da sala que estava aberta e, por entre a cortina, viu Francisco sentado no sofá. Da sacola de couro, retirou o instrumento de sua vingança e, com o dedo já fazendo pressão no gatilho, apontou a arma para a cabeça de Francisco.
Enquanto apontava a arma, Henrique foi invadido por uma sensação de raiva misturada com prazer e com sentimento de libertação de algo que o aprisionara nos últimos anos. E foi nesse pequeno espaço de tempo que viu, no sofá, ao lado de Francisco, alguém dormindo sob uma coberta de lã. Tinha uma fita no cabelo e aparentava ter em torno de 13 anos. Henrique foi invadido por lembranças de Célia lhe contando histórias, sua mãe lhe fazendo curativos nos joelhos esfolados, seu pai lhe falando sobre os pequenos negócios que fazia. Todo o sofrimento e abandono de tantos anos também estavam ali presentes, cravados em seu peito. Com o olhar fixo na menina que dormia, num acesso de contrariedade e desvestido do ódio, deixou escorregar de suas mãos a arma que, ao cair, bateu forte na pedra da varanda e lá ficou.
Henrique esgueirou-se para a rua, apressou o passo e abandonou aquele lugar. Na varanda, assustado, Francisco observava o revolver Taurus 38 prateado, com duas cápsulas detonadas e quatro intactas no tambor.