O Traste

Geni Oliveira

O traste


Acordei assustado com o som do telefone. Era Lúcia, minha amiga desde o tempo do colégio. Estranhei, pois ela não costuma acordar antes do meio-dia. Disse que tinha acontecido algo desagradável e precisava da minha ajuda. Seu pai tinha morrido. Não havia emoção na sua voz. Eu nem sabia o que dizer.
Ajudei-a com a burocracia da morte e fomos para a capela velar o traste. Assim sua mãe se referia ao ex-marido, mas não se furtou à cerimônia. Presentes apenas eu, a minha amiga, seu irmão e sua mãe. O irmão mais velho não compareceu. Todos nós de óculos escuros como convém nessas horas. Conversávamos contando piadas, o morto no meio da sala e, pela primeira vez, sem perturbar a família. Nenhuma lágrima. Ninguém retirou o lenço branco que cobria o rosto do morto.
Não sei o que pensavam, mas acompanhei de perto a falta de cumplicidade daquela família. Aos 67 anos, ele orgulhava-se por nunca ter trabalhado e não considerava um problema ter dividas. Não deixava ninguém esquecer que o dinheiro era dele, gastando sem pudor a herança recebida dos pais. Fazia questão de ser desagradável e, quando chegava em casa, até o gato sumia. Colocava um filho contra o outro, humilhava a mulher mesmo quando estava sóbrio. Ficou indignado quando ela pediu a separação. Continuou perturbando a família, fazendo chantagem emocional.
Um padre espiou pela porta. Cumprimentou-nos e se afastou. Ninguém havia encomendado serviço religioso. Quando estava quase saindo quando resolveu voltar. Do morto nada sabia, a não ser o nome. Encomendou o corpo de Otávio. Uma reza estereotipada sem muito sentido para nós que o conhecíamos bem. Falou de amor, de respeito e de perdão.
O caixão foi fechado e seguiu num carrinho levado pelo coveiro para o cemitério. Ninguém se ofereceu para segurar suas alças. O filho nem subiu a lomba. Seguíamos atrás em silêncio. Nenhuma emoção. Talvez alguns pensamentos sombrios afastados com muita habilidade. O padre resolveu nos fazer companhia. O silencio foi quebrado por sua voz grave.

“Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus
Pois ela, ela te sustentará
Não temas, segue adiante e não olhes para atrás
Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus e vai.”

Tive que me conter para não perguntar:
- Vai para onde?

 

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