Naquela Vila

Geni Oliveira

Naquela Vila

Linha do trem. Limite entre a vila e o que era conhecido como “cidade”. Do outro lado dos trilhos, as pessoas pareciam mais bonitas, felizes e usavam roupas de domingo todos os dias. Sabia-se de suas vidas pelas vizinhas, empregadas domésticas que transitavam entre os dois mundos.
Do lado de cá, esgoto a céu aberto, sujeira nas ruas sem calçamento, casas de madeira muito próximas umas das outras. Moradias inadequadas, doenças evitáveis roubando vidas. Becos onde as crianças eram proibidas de passar e cantinas próximas ao porto onde mulheres de família nem se aproximavam, o que tranquilizava os maridos que iam lá jogar, beber e em busca de outros prazeres.
A mesma vizinha que benzia cobreiro brabo e ensinava como fazer xarope para tosse comprida era a fazedora de anjos da vila, resolvendo os problemas de muitas moças que davam provas de amor aos namorados. E quando a polícia dava batida, nem desconfiava daquela velha senhora tão frágil e prestativa.
Os vizinhos protegiam-se e até mesmo os ladrões tinham certa ética. Exerciam suas funções em outros lugares. Todos na vila se ajudavam Pedir uma xícara de açúcar ou de arroz era comum. Conversar sobre os problemas do dia a dia também. Terapia de pobre. Culpando-se por não terem estudado, achando-se menos inteligentes, vivendo da melhor forma possível. Gente humilde, sem carteira assinada, tendo que buscar água em barris em locais distantes após um exaustivo dia de trabalho. Sempre com a esperança de dias melhores. No inverno, a vila transformava-se num atoleiro.
O maior medo de todos era de incêndios. Havia muitos gatos na vila. Enquanto seu pai não lhe explicou que fazer um gato era roubar energia elétrica, por mais que usasse a imaginação, Lauren não conseguia entender o que animaizinhos tão dóceis tinham a ver com incêndios. Até hoje não entende a origem dessa expressão.
Todos na vila ainda se lembram do que ocorreu num dia quente de janeiro. Domingo, crianças em férias, almoço caprichado. Galinha assada, arroz, sagu e suco de uva. O ar parecia parado. Até mesmo os cachorros estavam quietos. De repente, o som ensurdecedor dos bombeiros. Lauren saiu à rua. Gritaria, informações desencontradas. Muita gente correndo, alguns de pés descalços. O cheiro acre de fumaça causava tosse. Os olhos ardiam.
A casa da dona Marieta pegara fogo. Alguns diziam que ela corria o risco de perder tudo. Lauren sempre ouvira dizer que a velha senhora não tinha nada. Um paradoxo. O caos instalado. Raiva, medo, sentimento de culpa, mágoa, compaixão. A miséria agravada pela desgraça.
Estarrecida, de olhos arregalados, Lauren observava o bailado das chamas. As labaredas tudo consumiam. Não só a casa, mas toda uma história, como diziam os mais velhos. Em seus nove anos de vida, Lauren já vira muita coisa. A morte súbita da mãe de uma de suas amigas e o choque de vê-las de roupas pretas, a prisão de um colega de seu pai por assassinato e o suicídio de um vizinho que se enforcara no ano anterior.
A preocupação dos bombeiros era salvar as casas vizinhas. Por sorte, não ventava. Um dos soldados do fogo morreu, apesar dos esforços dos colegas para salvá-lo. Virou nome de rua em Rio Grande. Soldado Bombeiro Antonio Silveira Azevedo.
Dona Marieta precisaria contar com a caridade da vizinhança e com a disposição da Prefeitura em ajudá-la. Alguns diziam que os políticos seriam prestativos, pois era ano de eleição.
A velha senhora gritava que precisavam salvar o Zé. Quando um dos bombeiros, num ato heroico, entrou na casa com as paredes desabando, ela se calou.
Ao ver o jovem soldado sair dos escombros com seu bichinho de estimação, única companhia desde que ficara viúva, Dona Marieta não mais conteve as lágrimas. O bombeiro entregou o Zé para a dona e ele, um papagaio tão falante, encolheu-se no seu colo.




 

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