Entre Ruas

Geni Oliveira

Entre Ruas

Minhas raízes são de Rio Grande. Mas é em Porto Alegre que exercito minhas asas. Voltei a escrever e, num ato de ousadia, participar de oficinas literárias. Ao contrário de muitos, não tinha nada em gavetas. Meus escritos perderam-se em várias andanças. Sobrevivência difícil criando dois filhos sozinha, emoções amordaçadas.
Há dez anos, moro em Porto Alegre. E, aos poucos, descubro as belezas desse lugar com tanta luminosidade. Minha cidade é sombria, o vento seu personagem principal. Olho o Guaíba. Bem diferente do mar com suas ondas ensandecidas chocando-se com o cais que atraíam meus olhos de menina.
Ao caminhar pelos parques, deparo-me com árvores centenárias. Troncos que mais parecem esculturas e raízes arrebentando calçadas em busca de liberdade. Percebo os matizes do verde, o colorido dos jacarandás e dos guapuruvus. Há sempre um passarinho a minha espreita. Às vezes, um bem-te-vi denuncia a minha presença. Respondo da mesma forma. De uns tempos para cá dei pra falar com os bichinhos. Vira-latas amorosos, gatos ariscos, cavalos suados pastando nos momentos de folga. Meus vizinhos nem sempre me cumprimentam, mas os animais nunca deixaram de se manifestar ao som da minha voz.
Na Rua da Praia, artistas tornam o meu dia mais feliz. O homem-orquestra tocando músicas antigas, o rapaz do violão entoando boleros, um grupo cantando música country, com um bom-humor contagiante. Na esquina, a estátua-viva que, por uma moeda, movimenta-se e, com delicadeza, entrega uma mensagem. Ao longe, o canto guarani e o som cadenciado de pés ao ritmo da música.
De repente, o susto. Um homem de terno e gravata, a Bíblia na mão como uma arma, aos gritos ameaça a todos com o fogo do inferno se não se arrependerem dos seus pecados. Será que é esse o meu destino?
Aos poucos, vou conhecendo essa cidade que tanto me oferece. O pôr do sol, tão exaltado em prosa e verso não se compara ao da minha adolescência. Talvez por eu estar constantemente apaixonada e ver a vida em cor-de-rosa como na canção de Piaf.
Às vezes, como Quintana, me deparo com esquinas esquisitas. E meus olhos assustados encontram o olhar do menino de rua que, há muito tempo deixou de ser criança. E vejo nas calçadas, nos dias frios e chuvosos em que o vento impiedoso nos faz caminhar encolhidos, uma fileira de moradores de rua, deitados em pedaços de papelão, enrolados em cobertores encardidos. Corpos amorfos, sem identidade.
Envergonho-me e sigo em frente. Nessa Porto Alegre que, para muitos, mostra-se triste e hostil.

 

voltar para página do autor