Unidos pela Liberdade

Geni Oliveira

Unidos pela Liberdade

A morte é melhor do que a vida
sem honra, sem dignidade e sem glória.
(Brizola).

No Instituto Santa Luzia, as freiras ouviam pelo rádio o discurso de Brizola. E, à medida que suas palavras dramáticas ecoavam pela sala, sentiam o medo crescer e os dedos ágeis iam deslizando pelas contas do terço. Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim.
Irmã Terezinha, mais prática, providenciou uma lista do que faltava na despensa. Em tempos de revolução também se come. As rezas ficariam para mais tarde. Ela e duas semi-internas foram ao armazém.
Muitas pessoas disputavam espaço entre sacos de batatas, caixas com frutas e outras mercadorias e faziam os pedidos aos gritos. A freira foi logo atendida. Voltaram para o instituto com as sacolas cheias. Nunca se sabe o que se passa na cabeça dos militares, dizia Irmã Terezinha às meninas.
Ao chegar ficou sabendo que Elisa ainda não voltara. A essa hora nem adiantava ligar para a escola. O atraso devia ser por causa do trânsito. Milhares de pessoas atenderam ao apelo do governador e foram para a Praça da Matriz.
O frio era intenso quando Elisa saiu do Colégio Sévigné, acompanhada por Marta. Tinham que segurar as saias que o vento teimava em levantar. Elisa percebeu o alvoroço na Duque de Caxias. Sabia da renúncia de Jânio. Não imaginava que isso fosse tão grave. Todos comentavam o discurso do governador, sua coragem e audácia. Marta descrevia para a amiga os homens armados, as mulheres assustadas à procura dos filhos. Evitaram passar pelo palácio.
Elisa viera para Porto Alegre aos dez anos. Aprendera a conviver com a saudade. Determinação e coragem ajudaram-na a vencer os medos e a perseguir os sonhos de menina. A bolsa de estudos recebida quando já era uma adolescente pagava a hospedagem no Colégio Santa Luzia e o Curso Normal. Nela não estava incluído o carinho. Ela não se queixava. Tinha sempre alguma amiga disposta a ajudá-la.
Elisa estava acostumada aos sons do Centro. Nesse final de manhã, as vozes denunciavam pessoas apressadas e nervosas. Nada escapava ao olhar atento de Marta que não poupava detalhes para a amiga.
Batalhões de operários com uma faixa defendendo a Legalidade deslocavam-se pela Rua da Praia em direção à Praça da Matriz. Em frente à Livraria do Globo, Elisa ouviu alguém elogiando o trabalho dos jornalistas que se transferiram para os porões do Piratini. Carlos Bastos, da Última Hora, parece mais um militante, dizia o homem com admiração.
Marta olhou as horas no relógio da Casa Masson. Meia hora. Apressou o passo. Algumas pessoas esbarravam nelas. Elisa sabia que, se estivesse usando a bengala abririam caminho mais facilmente. Não queria desgostar a amiga. Não era sempre que alguém se dispunha a acompanhá-la e as armadilhas para cegos cresciam dia a dia. Seguiram em frente. Para o ponto de ônibus da Rua Uruguai.
Nesse dia tumultuado não se ouvia o som dos passarinhos e até mesmo as pombas escondiam-se bem longe do barulho. O som cadenciado de um bonde, o latido de um cachorro vira - lata, o choro de uma criança birrenta e a voz alterada da mãe tentando acalmá-la iam compondo o cenário de Elisa. Marta lia as manchetes dos jornais quando passavam por alguma banca. “GOLPE CONTRA JANGO.” “BRIGADA: BALUARTE NA DEFESA DA ORDEM E DA LEI.” JANGO: VOU VOLTAR PARA ASSUMIR OU MORRER.”
Vozes alteradas na frente do Banco do Brasil. Muitos bancários se alistaram no Mata-Borrão, falou Marta. Um grupo de estudantes cantando o Hino Rio-grandense dirigia-se ao palácio. Brizola está disposto a morrer defendendo a Constituição e não podemos deixá-lo só, gritava um homem num megafone. O governador mandou fechar as escolas e levar as crianças para casa, falava uma mulher muito aflita na fila do ônibus.
Elisa não era mais criança. Normalista, pretendia transformar o mundo, torná-lo menos desigual. Mas, nesse momento, com o braço enfiado no da amiga, disfarçou uma lágrima.
O calor do afeto da família tão distante era tudo o que queria nesse dia frio e ventoso de agosto.

Geni Oliveira

 

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