O amor de Candinho

Marta Helena Fontoura vou

Parecia que tudo estava no seu lugar: a cama arrumada, a louça do café lavada, as janelas abertas, banho tomado e barba feita. Bem na hora, nove em ponto. Agora era pegar a boina e a bengala na chapeleira e sair para comprar o jornal. As manhãs de Candinho eram assim, gostava de rotina. Desta forma, sem surpresas e com tudo bem planejado, garantia uma vida sem sustos.
Bateu a porta do apartamento conferindo se tinha dado duas voltas na chave. Chamou o elevador com a esperança de não encontrar ninguém. As conversas desnecessárias lhe causavam apreensão. Para sua infelicidade a porta do apartamento em frente se abriu deixando à vista o menino e sua mãe. Viviam apenas os dois, o que não impedia de estarem sempre aos risos e tagarelando. No que a porta abriu o corredor ficou lotado de uma algazarra perturbadora.
Cumprimentaram-se e entraram no elevador. O menino não tirava os olhos da boina de Candinho. Enquanto isso a mãe do garoto tentava puxar assunto falando do tempo e outras amenidades. Candinho respondia de maneira econômica, o suficiente para não sair dos limites da educação. Enfim, ganharam a rua. Candinho foi em direção a banca de jornal recompondo sua solidão. A mãe, de mãos dadas com a criança, se dirigiu para o lado oposto.
Com o jornal em baixo do braço, Candinho entrou no parque a procura do banco que costumava sentar para ler. Quando chegou notou um livro sobre a madeira riscada do acento. Logo pensou no tipo de pessoa que esqueceria um livro num banco de praça. Sentou e ficou observando o objeto até que o pegou. Tinha a capa dura, verde escuro. Abriu e encontrou na contra capa um envelope com um bilhete preso com um clipe. Descobriu na primeira folha, escrito com uma letra caprichada com caneta esferográfica, bem no meio da página: Minhas receitas, Carlota. Pegou o bilhete e leu: comprar ovos e fermento, buscar o porta-retrato, pegar um extrato no banco, encontrar Silvia na praça e preparar os bolinhos para o Fabinho.
Candinho, mesmo sem saber ao certo se era correto, abriu o envelope. Descobriu o retrato de uma bela mulher. Atrás estava escrito com a mesma letra do bilhete: Carlota, 1961. Aparentava uns vinte e poucos anos. Era linda, hoje devia ter mais ou menos a idade dele. Começou a pensar na própria vida, sempre sozinho, nunca quis casar, constituir uma família. Homem de poucos amigos, pensando bem, mais colegas que amigos. Filho único, perdeu os pais ainda criança. Sua tia Matilde o criou sem mimos. Aprendeu a gostar de viver só.
Sem pensar muito resolveu levar o livro com ele. À noite, já deitado, dedicou-se por inteiro ao curioso objeto. Começou a folhear as páginas descobrindo uma infinidade de receitas, todas com o nome de alguém e alguma observação sobre a pessoa: Bolo fofo de milho da Suzana, filha querida e cuidadosa. Em outra página: Torta de legumes da Cotinha, esta era a irmã que lutara bravamente contra um câncer. Mais adiante: Ambrosia do Henrique, amor da minha vida. Lá pelo meio: Bolinhos de chuva do Fabinho, meu netinho espoleta.
A noite foi pequena para Candinho, seu encantamento com aquele livro não o deixou dormir tão cedo. A caligrafia arredondada e simétrica o encantava. Cada página virada exalava um perfume, ora de canela, ora de baunilha. Ficou um longo tempo imaginando a vida de Carlota: uma família construída, afetos costurados entre as medidas de farinha e açúcar. Uma vida barulhenta, com certeza. Imaginou-a com um avental branco batendo um bolo numa vasilha. Um lenço colorido emoldurando o rosto do retrato. Candinho dormiu com um sorriso no canto da boca.
Acordou fora da hora, mas isso não o incomodou. Olhou o livro na mesa de cabeceira e levantou decidido. Mal tomou seu café e saiu apressado, quase esquecendo a bengala. Voltou para casa com um pacote em baixo do braço. No caminho viu que as nuvens estavam pesadas, querendo cair do céu.
Mal entrou em casa e foi em busca da fotografia de Carlota. Desembrulhou o porta-retrato comprado e com ele emoldurou a foto. Colocou o retrato sobre a mesinha ao lado de sua poltrona na sala. Sentou e ficou admirando o belo rosto que sorria despudoramente para ele. Da janela chegava o barulho da chuva que desabava lá fora. Candinho correu para fechar os vidros. Lembrou do bilhete: fazer os bolinhos do Fabinho.
A tarde andou depressa na cozinha de Candinho, muito mais rápido que aqueles braços desengonçados tentando se coordenar. Passava das dezessete horas quando pegou o prato coberto com guardanapo e saiu. Deixou a porta bater nas suas costas enquanto apertava a campainha do apartamento em frente ao seu.
− Seu Candinho! – disse surpresa sua vizinha.
Um tanto sem jeito ele respondeu quase que sussurrando.
− Trouxe uns bolinhos para o menino.
A jovem agradeceu com olhos descrentes.
− Vou passar um café e o senhor fica para comer os bolinhos com a gente, pode ser?
Nisso o menino chega correndo e abraça as pernas de Candinho.
− Eu sabia, a cabeça dele é pelada. – Sentenciou o garoto olhando a cabeça lustrosa do velhinho.
Meio sem graça, Candinho lembrou da boina largada junto à bengala na chapeleira da sala. Ergueu os ombros e se deixou levar pela mão do garoto.





 

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