A velha e o burro

Marta Helena Fontoura vou

O céu ainda espalhava um negror sobre os desavisados, embora já ensaiasse o adeus costumeiro de uma noite gelada. No chão de terra batida, retumbava o arrastar das garras descalças da velha. Era a teimosia, mais que a precisão, que a fazia estar ali naquele pedaço de estrada, todos os dias, no alvorecer de cada manhã.
Carregava um ranço no caminhar inconfundível aos ouvidos ainda sonolentos. Como se dela não fizesse parte, ia a cabeleira branquicenta dançando ao som da brisa úmida do dia que se insurgia. A agudeza do nariz salientava o emaranhado de sulcos da cara ardida. A cada par de passos dados, sacudia o sino pendido ao longo do braço esquálido.
Além das cercas, as casas ainda mortas nada lhe respondiam. A imensidão do silêncio não chegava a ferir a casca grossa daquela alma esquecida. Assim se dava sempre: só na volta é que as janelas e portas escancaravam-se cuspindo os jarros secos à espera dela. Era quando a velha entrava cruzando as cercas. Levava o sino numa mão e pela outra trazia a surrada corda atada ao burro. Este, pisando em plumas, carregava no lombo o tarro de leite. As orelhas altivas lhe davam um ar de fidalgo que destoavam de todo o resto: do pelo seco e da barriga pendida em direção ao chão.
Alheia a tanto disparate, a velha ia enchendo os jarros e abrindo a boca do avental, atenta ao tilintar das moedas que caiam das mãos apressadas. Não havia quem apreciasse a mistura do cheiro da velha com o do burro. Difícil era abrir mão do leite recém tirado das cabras barulhentas. Mantinha dois pares de bichos em um cercado mal ajeitado num canto do pequeno pedaço de chão seco - era o que lhe cabia naquele naco de mundo.
No meio da manhã, a velha já estava de volta. Dava água para o burro e o soltava para pastar no rareado capim que de quando em quando brotava da terra seca. Ela, sem outra opção de agrado, entrava na casa e se perdia nas poucas lidas de uma solidão que cabia toda entre as paredes caiadas que lhe encerravam as dores e as minguadas alegrias.
Fazia um tanto de tempo que a vida lhe tirara a abundância das coisas. Para ela, apenas farelos . Lá atrás, em dias distantes, se incomodava muito com as chacotas do povaréu. Quando passava, não importava se grande ou miúda, toda a gente lhe ria na cara ou gritava: “Velha, vai pôr um sapato! Pé sujo! Corta as garra, velha!”
Naqueles dias ela varria o céu com os olhos cheios de água parada, até que o torpor de tanta indiferença se deixava ir. Então, um rio lhe fugia pela cara abaixo. Ninguém conhecia as dores que lhe consumiam. Nessas horas vinha o burro - chegava perto e lhe cutucava os ombros com a cabeça. Era assim que a velha ajeitava os ossos e empurrava o dia para frente.
Tanta caçoada acabou levando a importância para os confins do horizonte. O lombo das dores foi engrossando e os olhos secaram. Não fazia mais caso dos mal ditos das gentes. O povo foi cansando e deixou a velha se moldar na vida como quisesse.
Um dia as janelas escancararam sem o bater da sineta. As mesas já carregavam a bagunça das migalhas espalhadas e os pingados do café, e nada da velha, tão pouco do burro. No final da manhã um coro desafinado atravessou as cercas perguntando pela velha, pelo burro e pelo leite. Alguns sorrisos ingratos imaginavam a velha presa ao chão pelas próprias garras. Outros apenas mal diziam a falta do leite no café.
E veio a noite, e veio o outro dia. Nada da velha, nada do burro. Um tanto de gente se juntou para ir atrás da velha. Não demorou e já estavam em frente à casa. A única janela, arreganhava os beiços. O vento lambia a cortina encardida sacudindo o pó ao léu. Uma gritaria desafinada vinha por detrás da casa. O povo correu para ver. As cabras andavam desatinadas se batendo umas nas outras. Sem água no cocho, nem comida. Na casa não tinha ninguém. No colchão, o molde do corpo da velha gritava sua ausência. Um cheiro ocre desgrudava das paredes deixando um peso no ar.
Sem encontrar a velha, o povo decidiu levar as cabras e fechar a casa. Tudo que sabiam da velha era quase um nada. Foram para os arredores de olhos atentos, mas acreditavam que a velha tinha ido embora montada no burro e deixado as cabras e o buraco onde vivia para trás, sabe-se lá porque. Dali em diante alguém se encarregaria das cabras e do leite. A velha que se danasse.
A tarde andava pela metade, quando alguém despontou numa correria vindo dos lados do rio. Vinha gritando com os braços descontrolados.
− O burro! O burro está na beira do rio.
O povo desatou a correr em direção à beira d’água. Lá, todos constataram – o burro trotava de um lado ao outro da margem. Tinha o cocuruto voltado para a água e emitia um som que mais parecia um lamento. E foi de repente que os olhos de todos bateram no galho de uma das árvores da beirada do rio. Lá estava o vestido puído da velha – balançava feito um enforcado abandonado.
Por mais que o tempo andasse, jamais a gente daquele lugar deixou de ouvir um tocar de sineta na hora vazia da alvorada. Logo atrás, irrompia um troteado leve cutucando a humanidade ainda adormecida.


 

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