Inimaginável

Denise Accurso

Acordo com uma sensação de calor e sufocamento. Sinto-me enfraquecida, está difícil abrir os olhos. Quando os abro, percebo a claridade persistente, que invade cada brecha das janelas. Aquela luz alaranjada, o crepitar, o cheiro de fumaça…
– É um incêndio.
Aquela estava sendo uma primavera quente e de muitos incêndios. A floresta amazônica ardia há dias de forma incontrolável. Vitória, capital do Espírito Santo, e várias cidades do Norte e Nordeste combatiam incêndios dia e noite. Refugiados dirigiam-se para o sul, aparentemente mais seguro.
Aparentemente. Parece que o fogo incontrolável chegara ao Rio Grande do Sul.
Tentei lembrar das instruções dadas nos noticiários de TV, aos quais prestei menos atenção do que deveria.
Levantei e fui ao quarto da minha filha. Ela dormia. Estava empapada de suor. Toquei-a. Estava muito quente. Tentei acordá-la. Ela gemeu.
– Mãe! Estou com calor! Tu desligaste o ar!
– Filha, acorda. Abre os olhos. É sério. Tu precisas acordar.
Ela me olha. Está lânguida. Fecha os olhos novamente.
Entro no banheiro, pensando em molhar uma toalha e refrescá-la. Ao tentar abrir a torneira, sinto uma dor excruciante. Pedaços de minha pele ficam colados ao metal incandescente.
Enfio a mão no vaso sanitário, em busca de água. Não há. A dor e o calor penetram-me e me dão a certeza de que, se ficar aqui parada, morreremos.
Pego duas toalhas e enrolo uma na mão, que dói a ponto de eu querer arrancá-la. Volto ao quarto e sacudo Rafaela.
– Filha! Olha, é um incêndio. Temos que fazer alguma coisa ou morreremos aqui.
Ela abre os olhos, assustada, mas a técnica de choque de realidade funciona.
Andamos pela casa que, embora sem luzes, está clara por conta das chamas. É estranho que o nosso prédio não parece estar queimando… ainda. Com a outra toalha, abro a porta. Descemos as escadas. Estou pensando em ir ao subsolo, às garagens, imaginando que talvez lá seja mais seguro. Meu carro está lá, mas não atinei pegar as chaves. Também não sei se o metal estaria quente como a torneira. Espero estar fazendo a coisa certa.
Porque não dei mais atenção à enxurrada de informações sobre essa temporada mundial de incêndios? Via e ouvia tudo na TV com se fôssemos inatingíveis. Toda aquela conversa sobre calotas polares, extinção dos ursos e pinguins, necessidade de reflorestamento das florestas… Parecia que nada daquilo tinha a ver comigo. Estava tão ocupada, trabalhando, criando minha filha, pagando minhas contas… Que importância tinha tudo isso agora?
Minha filha estava toda mole em meus braços. Apesar do calor e da dor na mão, apertei-a um pouco mais, como se tentasse transmitir a ela um pouco da minha energia.
Ao chegar no subsolo, encontrei outras pessoas, transtornadas e perplexas, algumas queimadas como eu. Ninguém sabia o que estava acontecendo.
– Parece que o fogo vem vindo, como um tsunami. Não tem mais água pra combater incêndio. Foi o que dizia no rádio até pararem de transmitir.
Afastei-me das pessoas e sentei no chão, num canto, com minha filha no colo. Mais uma vez, eu preferia não saber. Não queria saber.
Ali esperamos o inimaginável. Começo a ver chamas acima de nós. Ouço sons de desabamento. Abraço ainda mais Rafaela.

 

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