Resíduos

Denise Accurso

Ela entrou em casa pela primeira vez depois de tudo.
A primeira coisa que viu foi a mesa e sobre ela, os resíduos da ausência. Vários pedaços de papel com diferentes anotações, farelos de pão, óculos fora do estojo.
Pensou em voltar. Sair dali, bater a porta, virar as costas e nunca mais regressar.
Sabia que não podia fazer isso, precisava ir lá e encarar toda aquela ausência.
Deu mais uns passos na sala. Na cadeira, o casaco jogado. Lembrou que, quando já estavam no carro, ela dissera que estava frio e que ia subir e pegar o casaco dele. Ele não permitiu. ?estou mal, Lia. Me leva de uma vez para o hospital?.
Não podia ainda acreditar que ele nunca mais voltaria pra casa. Que fazer, como viver com essa estranha e bizarra realidade?
Precisava ir ao banheiro, lavar as mãos, tomar um banho. Não conseguia forçar seu corpo a mover-se. Estava paralisada, imersa em perplexidade. Se entrasse no banheiro, visse a escova de dentes, os apetrechos de barba? seria insuportável. Não lhe restavam mais forças. Gastara tudo naqueles últimos dias. Gastara tudo mentindo para ele, mentindo para si mesma, convencendo a ambos que aquela provação teria um final feliz.
Pessoas jovens não morrem, era no que acreditavam. Morrem os velhos e doentes. Não um de nós, jovem, saudável.
Mesmo quando o médico a avisara do desfecho inevitável, não acreditou. Pois quando entrou no quarto, logo depois dessa conversa esdrúxula, lá estava ele, conversando como sempre, resmungando um pouco como sempre.
E agora, nada mais seria como sempre. Teria que lidar com a ausência eterna.
E todos aqueles resíduos, os óculos, as cuecas, as camisas, a caneca preferida, tudo que habitava aquele lar, tornavam mais inverossímil aquele desfecho. Como esses objetos poderiam perder assim o significado de uma hora para outra? Nunca mais seus óculos leriam nada, a caneca não mais se encheria de café?
A sensação de irrealidade, de um sonho ruim, de estar vivendo uma pegadinha não a deixava.
Precisava conseguir.
Afinal, a vida sempre continua.

 

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