Des-encontro

Denise Accurso

Estava na hora de eu descer e esperar a van. Desci sozinha. Seguido desço sozinha, já não precisa sempre um adulto me levar. Tenho a chave do portão do prédio e o combinado era eu sempre esperar do lado de dentro e só sair quando enxergar a van. Segredinho: nem sempre faço o combinado. Gosto de sair e ficar do lado de fora, olhando a rua. Não faço nada de errado e entro mais rápido quando ela chega.
Fiz a mesma coisa hoje. Fiquei quase colada ao portão do lado de fora. O que tinha de diferente era um charuto de gente ali do meu lado. Isso mesmo, um charuto de gente. Uma pessoa enrolada num cobertor de cor esquisita e deitada ali mesmo, no chão. Eu sei o que ele é: um morador de rua. Tem vários pela cidade, eu os vejo pela janela quando vou pra escola ou saio com a mãe, com o pai. E ouço o que as pessoas comentam. Sei que não deveriam existir. Não as pessoas, mas o morador de rua. Deviam ir pras suas casas. Ou então que o prefeito devia levar todos eles embora. É o que pensam os adultos.
No fim da tarde, quando a van me largou dentro do prédio, eu vi que o charuto se desfizera e lá estava seu recheio, uma pessoa em cima de uns restos de caixa de papelão. Consegui ver o cobertor e umas sacolas daquelas de plástico, do supermercado. Não pude olhar muito porque o tio Moacir fica ali esperando eu entrar antes de ir embora.
Hoje estava curiosa pra descer e ver se tinha alguma novidade na calçada. Tinha. Tinha um cheiro bem ruim, e um monte de coisas esparramadas nos papelões, tudo meio sujo e com cara de lixo. Fiquei com nojo! Tentei não olhar direto, mas era impossível, aquilo era muito diferente, um morador de rua no meu prédio! Pior é que acho que é uma mulher, não tenho bem certeza, não posso olhar muito porque ele/ela está me olhando e sorrindo, mostrando dentes estragados.
A van chegou. Achei até bom, estava me sentindo esquisita com aquela pessoa ali, me olhando.
Na volta entrei rápido, tentando não olhar. Mas não deu muito certo. Ainda ouvi alguma coisa, parece que me cumprimentando, não sei bem. E parece que tinha um cachorro também.
Agora não sei se vou esperar a van do lado de fora. Por mais que eu esteja curiosa, não sei como agir quando aquela pessoa fala comigo. Estou esperando a van do lado de dentro quando ouço o cachorro latir.
Isso me fez decidir e sair pra esperar do lado de fora. E o novo vizinho está ali, sorrindo pra mim: ?bom dia, princesinha!? Não tenho certeza se é homem ou mulher. Não sei se tenho que responder. O cheiro é tão, tão ruim! Ainda bem que não sobe até o meu andar. ?Olha aqui o Bidu, não quer fazer um carinho nele?? Está difícil fingir que não é comigo. Tento dar uma espiadinha, mas a pessoa olha bem dentro dos meus olhos. O cachorro é bem bonitinho, preto e branco, pequeno. Vou me aproximando, com muita vergonha e sem saber bem o que fazer. Estendo minha mão e faço carinho na cabeça do cachorro, que abana o rabinho em velocidade máxima.
Chegou a van. Desapareço dentro dela, sem responder ao ?tchau, princesinha!? Estou com a sensação de que fiz algo errado, algo que tenho que esconder e nunca contar a ninguém. Mas não vejo a hora de fazer carinho no Bidu de novo.
Hoje desci cedo pra esperar a van. Quando a pessoa sorri pra mim, tento sorrir de volta. Ela me chama: ?vem, princesinha?. Eu vou. O Bidu vem e me cheira. Eu me abaixo e ele faz uma festa pra mim. A pessoa olha, com aquele sorriso preto. E pergunta:
- Como é teu nome?
- Valentina.
Chegou a van.
Agora mal posso esperar a hora de esperar a van e brincar com o Bidu. Aquele moço ou moça está parecendo menos assustador. Só que, quando chego lá, não tem mais ninguém. Nem papelão, nem sacolas, nem cheiro ruim. E nem o Bidu e seu dono.
Entro na van tentando segurar o choro.

 

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