FLIP 20 ANOS E A LIBERDADE

Marta Leiria

Talvez nunca soubesse da existência de Maria Firmina dos Reis, das primeiras intelectuais negras brasileiras se, na companhia de minha amiga Verbena, não tivesse ido à vigésima Feira Literária Internacional de Paraty. Justa homenagem da Flip 2022 por ocasião do bicentenário do nascimento da também primeira romancista do Brasil. E seu pioneirismo não para por aí: "Úrsula", de 1859, é o primeiríssimo romance abertamente abolicionista do país. Da autora maranhense temos apenas o nome, a obra e relances de sua trajetória, como revela o almanaque da revista dos livros "Quatro Cinco Um", de Paraty. Pesquisadores da literatura e da história do Brasil, como Lilia Schwarcz (SP), discutiram a produção da autora sem rosto, cujos escritos permanecem ainda pouco estudados, conforme ouvimos na apresentação da Mesa intitulada "Minha liberdade".

Antes de "O navio negreiro", de Castro Alves, ser declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos "tumbeiros". O ineditismo de Maria Firmina, no entanto, se dá por mostrar o negro como sujeito de uma experiência histórica anterior à escravização, com vínculos afetivos, pertencimentos territoriais e falando por si mesmo. Foi aprovada em primeiro lugar no concurso público estadual para mestra régia, tornando-se a primeira professora efetiva a integrar oficialmente os quadros do magistério maranhense. Por que sequer sabíamos de sua existência e de tantas outras pessoas negras relevantes no cenário intelectual brasileiro? "Branqueá-las" ou ignorá-las é lamentável. Iniciativa importante, a da Flip.

Destaco também a Mesa intitulada "O corpo de imagens". Os artistas Lenora de Barros (SP), Ricardo Aleixo (MG) e Patrícia Lino (Portugal) surpreenderam o público com toda a liberdade criativa de sua poesia concreta, utilizando o corpo para instigar reflexões fazendo uso de performance, poesia, fotografia, literatura e artes visuais. Aproveitamos para fazer City Tour pelo centro histórico com o guia Bernardino, conhecedor da história e da arquitetura singular de Paraty, fundada no século XVII. A descoberta do ouro no interior de Minas Gerais no final desse século transformou a Vila de Paraty em porta de entrada para os que, aos milhares, buscavam enriquecer no eldorado brasileiro, conforme ensina Diuner Mello, sócio fundador do Instituto Histórico e Artístico de Paraty. Seu porto passou a ser o local de embarque do ouro e pedras preciosas para o Rio de Janeiro, de onde seguia para Lisboa.

Conhecemos monumentos religiosos, a casa onde mora o fotógrafo e empresário Príncipe Dom João de Orleans e Bragança (sim, o nome dele é Príncipe), bisneto da Princesa Isabel. Vimos de perto o barquinho em que Amyr Klink fez a corajosa travessia em 100 dias da África para o Brasil, desembarcando em Salvador. A casa onde foram gravadas cenas do filme de Bruno Barreto, "Gabriela, Cravo e Canela", com Sonia Braga e Marcello Mastroianni (1983). Passeamos por cafés, livrarias, restaurantes e, claro, conhecemos praias e ilhas de Paraty. Na mala, retornaram livros tratando dela, a liberdade, com destaque para "Discurso sobre a servidão voluntária", de Étienne de La Boétie, e "A lei", de Frédéric Bastiat.

Por lá, muitos brindes: chope, caipirinha com as cachaças locais, até vinho. Sem descuidar das boas caminhadas sobre as enormes e irregulares pedras do centro histórico. Destaco a Cervejaria Caborê, pertencente à Pousada Villas de Paraty, com incomparável infraestrutura, onde nos hospedamos: biblioteca, todos os tipos de jogos (fomos de Ping Pong), piscinas externa e fechada. Até academia e sauna (não pisamos lá). O que dizer do magnífico café da manhã disputado pelos saguis que ficavam de olho nas nossas frutas, pães de queijo, bolos, biscoitos artesanais? Dividíamos os deliciosos pratos nos restaurantes para (tentar) evitar trazer quilos extras. De primeiríssima, a pizza com vinho do La Dolce Vita. Salada e risoto de camarão da Casa Coupê, café com pudim de chia ao leite de coco e creme de goiabada na Livraria Maré. Camarão a bordo da escuna Netuno com direito a mergulho nas águas cristalinas da Praia dos Cocos devidamente registrado pelos clicks da fotógrafa argentina Ana. No último dia da viagem, Verbena quis ler no hotel. Eu, sempre ávida por sol e mar, tratei de fazer um derradeiro passeio de barco para desbravar prainhas da baía de Paraty e fui solita. Ou melhor, acompanhada do magnífico "Casei com um comunista", de Philip Roth. No final do dia, mais um brinde à amizade. E a um valor tão caro a nós à Flip 2022, a liberdade!

 

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