A boneca e as meninas de Kafka

Bruna Tessuto

Para poucas coisas na vida eu afirmaria um "assistiria outra vez". Com tantos filmes, espetáculos e shows por aí, não sou grande fã da repetição enquanto espectadora. Mas para tudo existe exceção. E estive presente em uma dessas exceções no último sábado. Trata-se do espetáculo "Kafka e a boneca viajante", em cartaz no Farol Santander, em Porto Alegre. A impressão é de que eu precisaria assistir pelo menos duas vezes para absorver e apreciar todas as delicadezas.

Uma das histórias mais bonitas dos bastidores literários pertence ao escritor Franz Kafka. Pouco antes da sua morte, conta-se, Kafka teria encontrado uma menina que chorava muito por ter perdido sua boneca. Para tentar consolar a garota, logo inventou que trabalhava como carteiro de bonecas e afirmou: "ela não está perdida, está viajando, mandou uma carta para você contando tudo. A carta está comigo, trago para você amanhã". E foi assim que ele passou a escrever as cartas de Brígida, a boneca, para Rita, a menina. Segundo as cartas criadas, acreditem: a boneca viajou mais que a Glória Maria.

O que me encanta em tal história é o talvez. Não se sabe se tal vivência de Kafka realmente aconteceu, as cartas nunca foram encontradas, assim como a dona da boneca. Mas, em cena, no espetáculo, todos estão juntos. Entre reflexões e belíssimas cantorias, acompanhamos a saga dos personagens. A menina, ao receber as cartas semanalmente, se sente abraçada e vai elaborando a dor da perda. Kafka, em seus últimos momentos de vida, não abandona o compromisso que firmou com a garota, embora, durante o espetáculo, se questione como seria o fim daquela invenção. Dora, sua esposa, acompanha tudo. E a boneca, bom, a boneca viaja, se apaixona e vive aventuras dignas de uma inveja do bem. Interpretada por Alessandra Maestrini, a boneca Brígida em nada lembra a icônica Bozena, de Pato Branco, daí, que consagrou a atriz na televisão. Esboço sempre um sorriso quando presencio trabalhos de atores que mudam radicalmente o corpo, a voz e a alma em cada personagem. Parece pré-requisito para ser ator, mas é raro de ser ver.

No dia em que assisti, uma menina, na primeira fila, soltava, vez ou outra, gritos. O pai, imagino que era o pai, tentava controlar a situação. Mas, em certa hora, num dos momentos mais bonitos do espetáculo, a garota começou a gritar e a se debater no chão. Parecia uma crise. Alessandra, sem perder a personagem, desceu do palco e começou a dar o texto olhando nos olhos da menina, que foi se acalmando. É evidente que a situação estava comprometendo a atenção da plateia e dos atores, mas me arrepiou todos os pelos a resolução de Alessandra. Porque é aquilo: a arte ameniza as dores, acalma os desesperos. E sempre salva. Em um beijo, se despediu da garota e voltou para o palco. Foi assim que os anseios, da menina da peça e da menina da plateia, encontraram um desfecho.

Entre os aplausos finais, eu só sentia prazer em saber que Alessandra Maestrini, Andre Dias, Carol Garcia e Lilian Valeska seguiriam em cartaz por mais um fim de semana na capital gaúcha. Porque as pessoas precisam assistir. E eu preciso ir de novo. Quem vai comigo?

 

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